Assistentes virtuais aceleram modernização tecnológica nas Defensorias Públicas
Criação de chatbot para resolver demandas de assistidos e marcar atendimentos virtuais se popularizou neste ano no país
A advocacia pública brasileira tem se dedicado nos dois últimos anos a desenvolver soluções tecnológicas que modernizem o setor com foco, principalmente, na automação da rotina interna dos defensores públicos. A chegada da pandemia da Covid-19, que impôs restrições de deslocamento e aglomeração em todo o país, exigiu contudo uma rápida resposta para atender às inúmeras demandas diárias daqueles que precisam de assistência jurídica gratuita.
Neste contexto, projetos de inovação voltados para o atendimento nas Defensorias Públicas, que ainda estavam em período de construção, se tornaram prioridade. De fevereiro a agosto deste ano, pelo menos três Defensorias conseguiram colocar no ar assistentes virtuais para atender aos assistidos. Em São Paulo surgiu o DEFI, no Ceará, a Dona Dedé, e na Defensoria da União, o Ivo. Os três robôs, somados à Luna, que já existe desde 2019 no Tocantins, inauguram uma nova fase na advocacia pública: a de ofertar soluções tecnológicas que interagem diretamente com a população.
De forma semelhante, todos os chatbots têm como função principal fazer uma triagem das necessidades dos assistidos e direcionar a demanda para a área responsável. Oferecem, também, a possibilidade de o cidadão reagendar atendimentos, acessar seus processos em andamento e consultar informações sobre o trabalho das Defensorias Públicas.
“A pandemia, se tem um efeito positivo, é o fato de tornar as defensorias mais digitais. O DEFI, assistente virtual de SP, veio nesse processo. Com a quarentena adotada, em um final de semana tivemos que organizar um primeiro canal de atendimento virtual por meio de um formulário. Mas essa era uma solução provisória. O passo seguinte foi desenvolver essa nova ferramenta robotizada para o contato da população com a defensoria”, diz Rafael Pitanga, primeiro subdefensor público-geral do estado de São Paulo.
Lançado em 24 de agosto, o DEFI já realizou cerca de 3,3 milhões de interações com os assistidos para questões criminais, cíveis e de família no estado. Cerca de 75 mil usuários se cadastraram para o atendimento virtual, que pode ser feito por computador ou pelo celular.
“Houve uma boa adesão do chatbot e trabalhar com inteligência artificial tem nos permitido atualizar esse sistema a partir dos gargalos que identificamos nos atendimentos já feitos. Quando uma pessoa entra no sistema e não chega até o final, passamos a identificar onde está o problema e corrigi-lo”, afirma Pitanga.
Na Defensoria Pública da União, o contexto para a criação do Ivo é anterior à pandemia, mas, durante o período de isolamento social, o assistente virtual ganhou mais importância e mais funcionalidades por causa do auxílio emergencial de R$ 600.
Desde janeiro deste ano, a empresa pública de tecnologia brasileira Serpro já vinha desenvolvendo o chatbot, para celular e computador, que inicialmente ofereceria informações básicas sobre o órgão. O Ivo, entretanto, se tornou um repositório de informações para quem teve a ajuda financeira negada pelo governo.
“Durante a pandemia, a nossa grande demanda de massa na DPU é o auxílio emergencial negado. O Ivo já vinha sendo gestado, porque identificamos que essa evolução era crucial para a Defensoria como um todo, mas por óbvio, a pandemia aumentou sua relevância”, afirma Lúcio Ferreira Guedes, defensor público e coordenador do Comitê Gestor do Sistema de Informações Simultâneas do DPU (SIS-DPU).
De acordo com Guedes, a próxima inovação voltada para o cidadão que está em desenvolvimento é um aplicativo de celular que vai permitir ao usuário resolver uma série de questões relativas à assistência jurídica gratuita.
A Luna é a assistente virtual pioneira nas Defensorias Públicas do Brasil. Ela foi desenvolvida no ano passado por um analista de tecnologia da informação que trabalha na própria Defensoria do Tocantins. Esse chatbot, no entanto, só funciona via conversas privadas no Facebook e não faz, ainda, o primeiro atendimento. Do ano passado até este mês, a Luna já trocou mais de 85 mil mensagens com cerca de 2 mil assistidos no estado do Tocantins.
Atualmente, o modelo está em processo de migração para o WhatsApp o que, na visão de Leonardo Coelho, defensor público e diretor regional da Defensoria em Palmas, vai popularizar ainda mais a ferramenta. “No WhatsApp, a Luna vai se tornar muito mais acessível à população”, diz. Segundo Coelho, a Luna faz parte de um combo de ferramentas desenvolvido pela equipe da Defensoria do Tocantins chamado Solução Avançada em Atendimento de Referência (Solar), que inclui sistemas de processamento eletrônico e geração de dados.
O técnico de TI que desenvolveu a Luna, Luiz Xará, está agora estudando a possibilidade de a assistente virtual conseguir realizar o primeiro atendimento dos assistidos, sem a necessidade de interação com humanos. “Isso está demorando um pouco porque existe uma complexidade muito grande de o assistido explicar o problema e a Luna conseguir entender do que se trata. Esse tem sido nosso desafio agora, mas tem sido bem interessante buscar essa solução”, afirma Xará.
Há uma preocupação unânime entre os defensores ouvidos pelo JOTA de que a criação dos assistentes virtuais seja interpretado como um afastamento da advocacia pública do cidadão mais vulnerável. Todos, entretanto, defendem que os chatbots são mais uma forma de contato e que as outras existentes, como disque defensoria 0800 e atendimento presencial, seguem normalmente para aqueles que não têm acesso à internet.
“A evolução da tecnologia não afasta a Defensoria do cidadão. A ideia não é fazer com que ela impeça os atendimentos presenciais. Ao contrário, é aumentar o número de atendimentos para aqueles que podem usar a tecnologia e, ao mesmo tempo, chegar naqueles que eventualmente não tenham essa capacidade”, avalia Fernando de Souza Carvalho, assessor especial do SIS-DPU.
Inovações virtuais na advocacia brasileira
Apesar de os assistentes virtuais serem as primeiras soluções pensadas para a interação propriamente dita com o assistido, algumas Defensorias Públicas do país já utilizam sistemas internos que automatizam a rotina de trabalho dos servidores.
Em São Paulo, por exemplo, se trabalha com litigância estratégica para soluções de casos complexos, raspagem e mineração de dados, além de pesquisas empíricas sobre os serviços prestados. Já a DPU está próxima de integrar seu acervo de processos com todos os Tribunais Regionais Federais do país. Desenvolve, também, um projeto para uso de inteligência artificial para confeccionar minutas sugestivas aos defensores.
“No momento em que você libera os servidores das atividades burocráticas, você dá um tempo maior para que eles se dediquem aos atendimentos itinerantes em localizações vulneráveis. Hoje, o grande entrave do defensor é ele preso no gabinete lidando com as demandas que recebe. Quando um sistema faz o trabalho braçal de forma automatizada, você ganha muito tempo para investir na nossa missão institucional”, diz Lúcio Ferreira Guedes, da DPU.
O desafio para a advocacia pública, assim como para a advocacia privada, envolve mudar a cultura organizacional do ambiente de trabalho para a implementação das inovações tecnológicas, segundo avalia Marina Feferbaum, coordenadora do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV.
“Nesse processo enorme de digitalização na advocacia há um risco grande de se encontrar resistência na cultura organizacional, porque a advocacia é extremamente tradicional. Na pandemia, houve uma evolução em questões antes impensáveis, como o home office, mas tem um lado que precisa de atenção sobre quanto esse tradicionalismo do Direito realmente impede os fluxos de inovação no setor”, afirma.
Para a pesquisadora, que conduziu um levantamento sobre o grau de inserção tecnológica nos escritórios de advocacia do país neste ano, não é possível avaliar se a advocacia privada brasileira está mais avançada no quesito inovação tecnológica do que a advocacia pública.
“No Brasil são muitas as advocacias, porque mais ou menos 70% dos escritórios são pequenas bancas de até três pessoas. Por causa disso, o grau de inserção tecnológico varia demais. Muitos escritórios não fazem sequer a gestão de conhecimento, considerado o primeiro passo para usar a tecnologia. Esse também é um desafio do serviço público”, explica.
No entendimento do defensor público de São Paulo Rafael Pitanga, existem desafios em comum entre as duas advocacias, principalmente em relação a encontrar as ferramentas mais modernas disponíveis no mercado, mas que caibam nos orçamentos. “No futuro, seguramente teremos que passar pela gestão baseada em evidências, já que trabalhamos com um volume muito significativo de casos e uma estrutura cada vez mais enxuta”.
Maurício Zockun, sócio do Zockun & Fleury Advogados e especialista em Direito Público, avalia que diante desse cenário de evolução tecnológica na advocacia pública é preciso discutir os limites para a utilização de ferramentas de inteligência artificial a depender do ato produzido por ela.
“Oferecer soluções para atos vinculados, como disponibilizar um número de protocolo ou uma base de dados, cabe a pronta aplicação de mecanismos de inteligência artificial. A situação se complica quando o ato é de natureza discricionária, como fazer uma petição inicial de um caso concreto, que demanda uma avaliação humana sobre qual é melhor abordagem. Nesses casos, a Inteligência Artificial deve oferecer um cardápio de possibilidades para o agente público e não uma solução única e padrão”, diz.
FONTE: JOTA