Especialista em espólio digital diz que mortos têm direito à privacidade
Em entrevista exclusiva, a psicóloga britânica Elaine Kasket, autora do livro All The Ghosts in The Machine, fala sobre a privacidade das redes sociais de pessoas que já morreram.
1 – Quando alguém morre, qual é o destino mais comum dos vestígios que a pessoa deixa na internet?
Kasket: Quando uma pessoa morre, não há um processo automático que reúna todos os seus dados e contas, então eles ficam espalhados por toda a parte. Alguns desses dados, que são muito diversos, estão protegidos por senhas, outros não. Algumas pessoas chamam esses traços de “pegadas digitais”, mas as informações estão se tornando tão complexas, abrangentes e coincidentes com quem somos que prefiro chama-los de “identidade digital”. Eles seriam como um espólio digital.
2 – E para quem vai esse espólio?
Kasket: A propriedade e o controle disso tudo não claros. A lei, na maioria dos casos, não prevê o que deve ser feito com essas informações. Os legisladores com frequência são pessoas de idade avançada, que foram treinadas para leis de outra era e não sabem o que pensar sobre informações digitais. Com isso,, a lei deixa de lado o tema, e grandes companhias de tecnologia, como Google, Facebook, Amazon e Apple, acabam no controle, escrevendo as leis e decidindo quem é que pode ter acesso ao material.
3 – Se eu morrer amanhã, o que vai acontecer com minha conta do Facebook?
Kasket: A pessoa pode configurar um contato para ter controle editorial da conta. Esse controle parece simples, mas pode envolver muita responsabilidade e ser mais complicado do que cuidar de um patrimônio físico. Além disso, o Facebook está tentando encontrar um tipo de política única, baseada no que a empresa acredita que reduzirá a dor. Mas a tristeza é uma coisa individual. Já conversei com uma mãe que ficou muito triste quando os lembretes de aniversário da filha pararam de ser enviados, enquanto que o Facebook agora tenta usar a inteligência artificial exatamente para impedir o envio dessas notificações. Se a pessoa que morreu não tiver estipulado esse contato ou a exclusão da conta e o Facebook for informado da morte, a empresa simplesmente presumirá que a pessoa gostaria que seu perfil fosse retirado e acrescentará o status “Em memória” ao perfil. Desde a nova política, só se coloca esse status quando um amigo ou parente avisa sobre o falecimento.
4 – E com minha conta no Google?
Kasket: Você também pode escolher um contato e decidir se a pessoa terá acesso a uma informação. Só que quase ninguém sabe disso, não é fácil de configurar. Eu mesma tentei e não consegui. Se você não tiver definido um contato, o que acontecerá não é claro. Os termos e condições mudam o tempo todo, então basicamente, o Google fará o que bem entender. Eles podem escolher liberar espaço nos servidores e simplesmente apagar tudo. Mesmo se seus parentes procurarem a companhia e disserem, por exemplo, que há um livro inédito salvo, o Google provavelmente negará o acesso.
5 – Por que isso acontece?
Kasket: Em parte, porque envolve também a privacidade de outras pessoas. Se seu cônjuge ou seus pais estiverem acesso, por exemplo, a seu e-mail, eles também terão acesso a informações de pessoas que estão vivas e que esperam que seus dados sejam privados. É complicado, porque muitas coisas na internet não são só seus dados, mas seus dados conectados aos de outras pessoas.
6 – Como isso é diferente, por exemplo, de cartas? Cartas também são privadas.
Kasket: Na Alemanha, recentemente, os pais de uma adolescente que morreu tiveram acesso ao Facebook Messenger (chat do Facebook) dela, em uma decisão de mais alta Corte alemã. Julgaram que o conteúdo não é diferente de cartas. Eu responderia o contrário, que é muito diferente. Se você herda uma caixa de cartas, você obtém um lado de uma correspondência. Não é igual Às coisas hiperpessoais que deixamos para trás na internet. A hora, as informações, os lugares onde estivemos. Os dados são capturados todo o tempo, mesmo quando não queremos. Nossos históricos de pesquisa, por exemplo, são muito pessoais. Há, também, o contato de outras pessoas, e você pode rapidamente chegar até elas. A combinação disso tudo é, no conjunto, muito mais reveladora e íntima do que qualquer caixa de cartas.
7 – Quais são as consequências disso tudo?
Kasket: Nós não pensamos tradicionalmente nas pessoas mortas como tendo direito à privacidade – geralmente, ela acaba quando a pessoa morre. Mas esses vestígios hiperpessoais me levaram a pensar se ainda devemos pensar assim. As companhias ainda estão dando direitos de privacidade a essas pessoas, mesmo depois de mortas. Contratos costumavam ser desfeitos quando uma das partes morria, e isso mudou. Hoje, os contratos de privacidade são considerados como mais importantes do que aquilo que parentes próximos podem querer. Isso é muito interessante, porque desde quando os mortos ainda têm contratos com empresas?
8 – Qual é o valor, para essas empresas, da retenção desses dados?
Kasket: No caso das redes sociais, memorias são muito importantes para o luto, principalmente quando a morta ainda é recente. As fotos e grande parte da correspondência estão lá, e o site funciona omo um arquivo muito importante. Muitas pessoas dizem que querem sair do Facebook, mas, se o fizerem, vão perder contato com os antigos que morreram. É lá que estão os memoriais em homenagem a eles. Se eu desativar minha conta, eu me tranco fora do cemitério e perco acesso à comunidade dos enlutados. Os mortos são importantes para manter os usuários vivos na rede social.
9 – Só isso?
Kasket: Há outro motivo: os dados históricos podem ser minados, analisados, e usados para diferentes tipos de vantagens do mercado ou para treinar a inteligência artificial e novos modelos. E é aí que eles obtêm vantagem, porque as empresas podem dizer que as pessoas estão mortas, então não tem mais direitos. Ou seja, para os parentes que querem ter acesso aos dados, podem dizer que os mortos têm direito à privacidade, mas, por trás das cortinas, podem usar esse dado para seus próprios negócios.
10 – Como as redes sociais mudaram os modos como nos enlutamos?
Kasket: A internet trouxe certa democratização da morte. Antes, amigos costumavam ser um grupo que definíamos como “enlutados marginalizados’. Eram pessoas cuja tristeza não era reconhecida como a da família. As redes sociais inverteram tudo. Esta é, de certa forma, a era dos amigos, que têm acesso a todas as correspondências e fotos. Então há famílias que não receberam mais cartas nem votos de lamentações. Há todas essas homenagens no Facebook, e os pais se sentem de fora, precisando pedir acesso aos amigos para vê-las. Foi uma mudança muito rápida.
11 – Quais são as consequências do conteúdo do luto estar hospedado por grandes empresas?
Kasket: Hoje não temos tantos vestígios não digitais. Com isso, são as grandes corporações que “vigiam” o portão das memórias. Isso pode ser bom, porque muitas pessoas podem ter a memória. Mas, por outro lado, tudo é frágil. Você pode pensar que tem acesso a um perfil do Facebook, mas, um dia, acordar e vê-lo apagado, porque foi assim que a família resolveu. Nós colocamos fé demais na longevidade e na disponibilidade das coisas digitalizadas.
12 – Como a senhora vê o direito à privacidade dos mortos?
Kasket: Sou favorável. Acredito que, se alguém manteve toda a correspondência protegida durante a vida, então não devemos tentar descobrir essas informações. Se não foi explicitado, então não deveria acontecer. Digo isso sem acreditar em vida após a morte. Entendo que, quando morrer, não terei consciência dessas coisas. Por outro lado, envolvem a vida de tantas pessoas. Quando alguém morre, e vasculha-se seus espólio digital, muitas vezes são descobertas coisas que eram desconhecidas. Informações que ferem as pessoas são reveladas.
13 – Ou seja, as mensagens dos mortos afetam os vivos?
Kasket: Sim. Além disso, se os contatos de meus amigos tivessem acesso a nossas correspondências, isso teria implicações para minha liberdade de me comunicar durante a vida. Se você pensa que, toda vez que você se comunica durante a vida, isso um dia será exposto para outra para outra pessoa, então sua liberdade será afetada, assim como sua liberdade de expressão. Não falo de atividades ilícitas nem de coisas ruins ou perversas. Mas nossa necessidade de saber que temos privacidade é psicologicamente muito importante. Se perdemos o direito à privacidade da comunicação pessoal, isso enfraquecerá nossa autonomia, o que não é bom nem para os indivíduos nem para a sociedade.
14 – O Facebook está destinado a se tornar um cemitério?
Kasket: Recentemente, pesquisadores de Oxford publicaram uma pesquisa dizendo que, ao final do século, o Facebook deverá ter 2 bilhões de perfis de pessoas mortas. Muitas pessoas responderam que o Facebook não vai existir até lá ou que todos terão deixado a rede social. E, na verdade, esse é o problema. Porque, caso se torne um cemitério e não haja mais incentivos financeiros para eles, isso contrariaria completamente o modelo econômico da companhia. Eles não são um arquivo, não se destinam a guardar a memória das pessoas. Se, em algum momento os dados dos mortos são interessarem mais ao Facebook, serão abandonados.
15 – O que a senhora quer que aconteça com seu legado digital após sua morte? Pensa nisso?
Kasket: No Facebook tenho um contato para administrar meu legado, e farei o mesmo se o Google deixar. Acredito que um memorial digital que muitas pessoas possam acessar seria útil no período logo depois de minha morte e gostaria que houvesse um. Mas não acho que isso durará muito e fico feliz por ter imprimido álbuns de fotos, ter escrito livros e construído coisas físicas com minha filha. Também contei muitas histórias para meus amigos e parentes. Prestei atenção nos modos pelos quais nós sempre nos lembramos, porque não vou confiar minhas memórias mais importantes, queridas e significativas à nuvem nem a qualquer empresa.
Fonte: Revista Época